- Para um retrato aproximado do artista
Vou pertencer você para uma
árvore.
E
pertenceu-me.
Escuto o perfume dos rios.
Sei
que a voz das águas tem sotaque azul
Sei botar cílios nos silêncios.
Só não desejo cair em sensatez.
Não quero a boa razão das coisas.
Quero o feitiço das palavras.
(Manoel de Barros) [1]
O poeta Manoel de Barros, que acumula 75 anos
de poesia, parece andar na contramão do desejo de visibilidade, uma das
características da sociedade nesta fase chamada de pós-moderna em que quase
tudo tende a tornar-se público e a privacidade parece estar dimensionada em
menor valor tendo em vista o anseio pela fama. Segredos e intimidade parecem
coisas do passado numa sociedade que privilegia a forma e a aparência, e o
anonimato pode ser entendido como ausência de importância social. Estamos
culturalmente presos à ânsia do espetáculo e sob a obrigatoriedade de sucesso.
Um dos padrões dominantes é que o indivíduo se mostre sempre venturoso e vencedor
ainda que se tenha de pagar um alto preço. É nesta cultura
midiatizada que se destaca um personagem chamado Manoel de Barros, o nome
oficial de Manoel Wenceslau Leite de Barros, nascido no Beco da Marinha, à
beira do Rio Cuiabá, em 1916.
A família se mudou para Corumbá, em Mato Grosso do Sul,
quando Nequinho, como o chamavam carinhosamente os familiares, tinha apenas
dois meses de nascido.
A obra de Manoel de Barros constitui-se também
de suas memórias e o locus dessas
vivências e lembranças é o Pantanal, é Corumbá, a cidade - limítrofe com a
Bolívia. O constructo de sua poética contempla a experiência de uma vida entre
urbana e rural em mundos não divididos apesar de fronteiriços e no qual o poeta
estabelece os “deslimites”, neologismo criado por ele que funciona como
metáfora de seu fazer poético. De fato, na sua poesia encontram-se
representados os elementos da natureza e a construção da linguagem se faz
similarmente àquela região que não tem feição definitiva porque seus contornos
variam segundo o ir e vir das águas. De acordo com o poeta, em entrevista a José
Castello: “No Pantanal não se pode passar a régua. A
régua e o Pantanal não têm limites”(BARROS, 1996, p. 2).
O Pantanal constitui-se num bioma com
caracteres geomorfológicos e geológicos – hidrografia, conjunto climático, além
da fauna e flora - bastante específicos; caracteriza-se ainda pela sazonalidade
imposta pelo ritmo das águas que ocasionam cheias e secas. Sua complexidade
deriva do fato de haver sete pantanais nas regiões que compreendem o Mato Grosso
do Sul e a Amazônia, sendo que hoje em dia a região é nomeada no plural. Toda
esta diversidade geográfica também deu origem a uma gama considerável de
palavras que pertencem ao registro oral próprio do povo pantaneiro,
caracterizando uma espécie de dialeto.
O poeta
chegou à conclusão de que cada fazenda do Pantanal constituía-se numa ilha
linguística e ele próprio coligiu cerca de quinhentas expressões desse
“dialeto” pantaneiro. Ele se autodenomina um “bugre
velho”. O bugre é um termo que designa os índios e a população que se formou a
partir da mistura com esta etnia. O termo “bugre” refere-se ainda à população
rude, típica de certas áreas rurais do Brasil ou mesmo, metonimicamente, ao
sujeito desqualificado, o popular “João-ninguém”. Há bugres na cidade, mas os
verdadeiros são os que vivem no mato, que se escondem e são agressivos e
arredios, segundo nos ensina Guisard (1996). O termo é pejorativo e o ser
“bugre”, em Manoel de Barros, representa
uma maneira de estar no mundo com sua escrita obscura e com sua diferença no
trato com a língua fazendo-se em oposição à mera tradução de sentimentos e da
descrição de paisagens.
A autoafirmação de ser bugre por parte do poeta
é irônica. Pretende sublinhar sua identificação com os excluídos sociais de
toda sorte; alinha-se, portando, aos personagens que comparecem a sua obra e
que representam figuras sem relevância social. O “ser bugre” também diz
respeito à identificação com seus pares no trato com uma linguagem em que
predomina a oralidade. O poeta, ao recriar a linguagem cabocla própria de seu
habitat, amplia e aprofunda as características orais do caipira do Brasil
central, que se articula também em oposição à gramática normativa. Identificação
e rebeldia se associam, portanto, nesta poética cujo grau de estranhamento
revela-se nos arranjos sintáticos surpreendentes, nas desarrumações da frase e
pela criação de neologismos combinados ao uso de arcaísmos, resultando no que o
poeta chama de “errar a língua”. A escrita barreana, no exercício
metalinguístico de explicar a própria poesia, diz num de seus poemas:
O sentido
normal das palavras não faz bem ao poema./ Há que se dar um gosto incauto aos
termos./Haver com eles um relacionamento
voluptuoso./ talvez corrompê-los até a quimera./ Escurecer as relações entre os
termos em vez de aclará-los./ Não existir mais reis nem regências./ Certa
liberdade com a luxuria convém (BARROS, 2010, p.265).
Manoel de Barros concebeu uma
densa obra reunindo títulos para o público adulto e também para o infantil[2]. Homem
de muitas leituras, estudou poetas e filósofos da antiguidade, pesquisou sobre
Linguística e os grandes teóricos da literatura. O onírico e o surrealismo parecem
ter sido apreendidos pela fruição de pintores como Paul Klee, Picasso, Miró,
Modigliani, Van Gogh; há registro de códigos visuais hauridos desses artistas nesta
poética que privilegia o aspecto imagético. A obra barreana varia entre o
explícito de textos aparentemente fáceis e o implícito, apresentando
combinações semânticas obscuras como esta: “Na língua dos pássaros uma
expressão tinge a seguinte. Se é vermelha tinge a outra de vermelho. Se é alva
tinge a outra dos lírios da manhã”. (BARROS, 2010, p. 371). Além do mais, sua
escritura parece se estruturar em camadas, possibilitando várias leituras. Um
dos leitmotiv de sua poética é,
paradoxalmente, o nada.
Entre o nada e o tudo, o poeta intercala na
página a palavra e a sua ausência, pois busca sobremodo o mutismo do silêncio:
“uso as palavras para compor os meus silêncios/ Não gosto das palavras fatigadas de informar”, reitera a
cada entrevista nas quais procura explicar as ideias que norteiam sua poesia, que
privilegia a linguagem em si antes que a informação: “Sempre que desejo contar
alguma coisa, não faço nada; mas quando não desejo contar nada, faço poesia”. (BARROS,
2010, p. 347).
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