quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Me leia

O amor
em mim desenhou um ocaso.

O coração está na curva do rio,
onde passam os cavalos.


quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Me leia:

RECADO

Venho de um longínquo recado.
Para que eu chegasse
todo o tempo foi proscrito.

E o silêncio
tornou-se útil
à minha passagem.




POEMA EM LINHA RETA

Álvaro de Campos - heterônimo do poeta Fernando Pessoa


Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
 Indesculpavelmente sujo, Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
 Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
 Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
 Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
 Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
 Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos, Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
 Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
 Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
 Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.






O Poema em linha reta

             Fernando Pessoa é um poeta português que se situa entre o Simbolismo e o Modernismo. Sua obra é de teor universal e se constitui em um legado para Língua Portuguesa, junto a Luís de Camões. A característica principal do poeta e escritor português é ter concebido uma obra marcada pela heteronímia, que se constitui no desdobramento do sujeito poético em outros e que são construídos como verdadeiras personalidades poéticas. Os poemas assinados por Fernando Pessoa agrupam-se na sua obra denominada ortônima, também denominada “Fernando Pessoa, ele mesmo”. Os críticos da obra pessoana consideram o heterônimo Álvaro de Campos como o mais próximo do eu lírico em Fernando Pessoa. É ele quem assina este “Poema em Linha Reta”, que se celebrizou, inclusive, por lançar, no âmbito da literatura ocidental contemporânea, um protesto contra a vaidade, que se ampliava na apologia à vida moderna e na propagação de ideais calcados na aquisição de bens materiais em que o “ter” ganhava relevo sobre os valores em torno do “ser” naqueles fins de século XIX.           

 De fato, por um crescente desenvolvimento tecnológico, os valores estavam convulsionados e em lugar dos ideais românticos, o espírito cientificista e positivista também se fazia como um elogio ao materialismo. O heterônimo Álvaro de Campos é descrito pelo poeta Fernando Pessoa como um engenheiro de ascendência inglesa, que havia estudado na Escócia e migrado de volta à Lisboa, mas não logrou êxito na carreira. Segunda consta, ainda, é o único dos heterônimos na poética pessoana que apresenta fases em sua poesia, sendo a primeira marcada pelo Decadentismo, que aparece já no declínio do Simbolismo; a segunda, sob a influência do Futurismo, movimento que foi deflagrado pelo italiano Marinetti e que fazia a apologia do homem moderno com sua produção tecnológica.
          Por fim, a terceira fase da poética do heterônimo Álvaro de Campos teria sido marcada pela filosofia niilista, expressando-se por um total desencanto pela vida, e na descrença de respostas positivas às perguntas existenciais, escatológicas. No niilismo, tendência filosófica que surgiu após a Revolução Francesa, proclamava-se uma atitude em que se mesclam a nostalgia e o cinismo, bem como a indiferença pelos fatos essenciais da vida.
          Do conjunto de poemas assinados pelo engenheiro Álvaro de Campos destacam-se também “Ode Triunfal” e “Tabacaria”. No primeiro, o sujeito poético exprime seu entusiasmo pelo mundo das máquinas, completamente voltado para o Futurismo, mas onde se nota também um acento nostálgico, mesmo crítico e irônico com relação à relativização da importância do homem, que se vê em muitas tarefas substituido pela máquina naqueles fins de século. No poema referido, Álvaro de Campos exclama: “A dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica/ tenho febre e escreve /Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto/ Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos”.
         O entusiasmo do sujeito lírico ante as máquinas, que se oferecem infalíveis ao homem moderno, não esconde um certo estranhamento e no decorrer da enunciação também desdenha da cultura cientificista, que se impunha no mundo de então. No poema “Tabacaria”, quinze anos mais tarde, Álvaro de Campos escreveu: “Não sou nada / nunca serei nada. / Não posso querer ser nada. /A parte isso tenho em mim todos os sonhos do mundo/[...] Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade/ estou hoje lúcido, como se tivesse para morrer”. Nesse texto, o heterônimo deságua todo desencanto, manifestando a tendência niilista que dominara a sua poética nessa sua terceira fase e que engloba também este “Poema em Linha Reta”, no qual o eu lírico expõe não só o desencanto niilista que apregoa a falta de sentido da existência mas também expõe a impotência de um indivíduo frente a um sistema que privilegia a aparência surgindo com e a necessidade competitiva.
           Este poema também nos remete à visão de mundo pessoana sobre a sociedade lisboeta de então. De maneira direta o sujeito poético faz uma declaração arrojada, pessoal, de tom muito confessional a julgar pelo primeira estrofe: “Nunca conheci quem tivesse levado porrrada,/ todos os meus amigos têm sido campeões em tudo/ e eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil/ Eu, tantas vezes irrespondivelmente parasita/indescupavelmente sujo”. Os versos revelam uma total exposição e despojamento na negativa do sujeito poético ao se colocar como uma pessoa desqualificada diante de “campeões”. No entanto, utiliza-se de profunda ironia em sua declaração que exibe um contraste entre uma posição e outra. A ironia é um instrumento de retórica, utilizado largamente para se fazer uma crítica, uma denúncia, um libelo, um protesto, colocando-se expressões de outro timbre que disfarcem aquilo que se quer dizer realmente. O poeta lança injúrias consigo mesmo para denunciar um comportamento que tende a esconder a real condição de seus pares.
      

segunda-feira, 11 de março de 2013

MANOEL DE BARROS

 

  1. Para um retrato aproximado do artista

 

                                                                                 

 
 
                                                                         
Deus disse: Vou ajeitar a você um dom:

                                                                           Vou pertencer você para uma árvore.

                                                                           E pertenceu-me.

                                                                           Escuto o perfume dos rios.

                                                                           Sei que a voz das águas tem sotaque azul

                                                                           Sei botar cílios nos silêncios.

                                                                           Só não desejo cair em sensatez.

                                                                           Não quero a boa razão das coisas.

                                                                           Quero o feitiço das palavras.

 

                                                                                                   (Manoel de Barros) [1]

 

               O poeta Manoel de Barros, que acumula 75 anos de poesia, parece andar na contramão do desejo de visibilidade, uma das características da sociedade nesta fase chamada de pós-moderna em que quase tudo tende a tornar-se público e a privacidade parece estar dimensionada em menor valor tendo em vista o anseio pela fama. Segredos e intimidade parecem coisas do passado numa sociedade que privilegia a forma e a aparência, e o anonimato pode ser entendido como ausência de importância social. Estamos culturalmente presos à ânsia do espetáculo e sob a obrigatoriedade de sucesso. Um dos padrões dominantes é que o indivíduo se mostre sempre venturoso e vencedor ainda que se tenha de pagar um alto preço.                                     É nesta cultura midiatizada que se destaca um personagem chamado Manoel de Barros, o nome oficial de Manoel Wenceslau Leite de Barros, nascido no Beco da Marinha, à beira do Rio Cuiabá, em 1916. A família se mudou para Corumbá, em Mato Grosso do Sul, quando Nequinho, como o chamavam carinhosamente os familiares, tinha apenas dois meses de nascido.

              A obra de Manoel de Barros constitui-se também de suas memórias e o locus dessas vivências e lembranças é o Pantanal, é Corumbá, a cidade - limítrofe com a Bolívia. O constructo de sua poética contempla a experiência de uma vida entre urbana e rural em mundos não divididos apesar de fronteiriços e no qual o poeta estabelece os “deslimites”, neologismo criado por ele que funciona como metáfora de seu fazer poético. De fato, na sua poesia encontram-se representados os elementos da natureza e a construção da linguagem se faz similarmente àquela região que não tem feição definitiva porque seus contornos variam segundo o ir e vir das águas. De acordo com o poeta, em entrevista a José Castello: “No Pantanal não se pode passar a régua. A régua e o Pantanal não têm limites”(BARROS, 1996, p. 2).

            O Pantanal constitui-se num bioma com caracteres geomorfológicos e geológicos – hidrografia, conjunto climático, além da fauna e flora - bastante específicos; caracteriza-se ainda pela sazonalidade imposta pelo ritmo das águas que ocasionam cheias e secas. Sua complexidade deriva do fato de haver sete pantanais nas regiões que compreendem o Mato Grosso do Sul e a Amazônia, sendo que hoje em dia a região é nomeada no plural. Toda esta diversidade geográfica também deu origem a uma gama considerável de palavras que pertencem ao registro oral próprio do povo pantaneiro, caracterizando uma espécie de dialeto.

             O poeta chegou à conclusão de que cada fazenda do Pantanal constituía-se numa ilha linguística e ele próprio coligiu cerca de quinhentas expressões desse “dialeto” pantaneiro. Ele se autodenomina um “bugre velho”. O bugre é um termo que designa os índios e a população que se formou a partir da mistura com esta etnia. O termo “bugre” refere-se ainda à população rude, típica de certas áreas rurais do Brasil ou mesmo, metonimicamente, ao sujeito desqualificado, o popular “João-ninguém”. Há bugres na cidade, mas os verdadeiros são os que vivem no mato, que se escondem e são agressivos e arredios, segundo nos ensina Guisard (1996). O termo é pejorativo e o ser “bugre”, em  Manoel de Barros, representa uma maneira de estar no mundo com sua escrita obscura e com sua diferença no trato com a língua fazendo-se em oposição à mera tradução de sentimentos e da descrição de paisagens.

               A autoafirmação de ser bugre por parte do poeta é irônica. Pretende sublinhar sua identificação com os excluídos sociais de toda sorte; alinha-se, portando, aos personagens que comparecem a sua obra e que representam figuras sem relevância social. O “ser bugre” também diz respeito à identificação com seus pares no trato com uma linguagem em que predomina a oralidade. O poeta, ao recriar a linguagem cabocla própria de seu habitat, amplia e aprofunda as características orais do caipira do Brasil central, que se articula também em oposição à gramática normativa. Identificação e rebeldia se associam, portanto, nesta poética cujo grau de estranhamento revela-se nos arranjos sintáticos surpreendentes, nas desarrumações da frase e pela criação de neologismos combinados ao uso de arcaísmos, resultando no que o poeta chama de “errar a língua”. A escrita barreana, no exercício metalinguístico de explicar a própria poesia, diz num de seus poemas:

 

O sentido normal das palavras não faz bem ao poema./ Há que se dar um gosto incauto aos termos./Haver com eles um  relacionamento voluptuoso./ talvez corrompê-los até a quimera./ Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los./ Não existir mais reis nem regências./ Certa liberdade com a luxuria convém (BARROS, 2010, p.265).

        

             Manoel de Barros concebeu uma densa obra reunindo títulos para o público adulto e também para o infantil[2]. Homem de muitas leituras, estudou poetas e filósofos da antiguidade, pesquisou sobre Linguística e os grandes teóricos da literatura. O onírico e o surrealismo parecem ter sido apreendidos pela fruição de pintores como Paul Klee, Picasso, Miró, Modigliani, Van Gogh; há registro de códigos visuais hauridos desses artistas nesta poética que privilegia o aspecto imagético. A obra barreana varia entre o explícito de textos aparentemente fáceis e o implícito, apresentando combinações semânticas obscuras como esta: “Na língua dos pássaros uma expressão tinge a seguinte. Se é vermelha tinge a outra de vermelho. Se é alva tinge a outra dos lírios da manhã”. (BARROS, 2010, p. 371). Além do mais, sua escritura parece se estruturar em camadas, possibilitando várias leituras. Um dos leitmotiv de sua poética é, paradoxalmente, o nada.

            Entre o nada e o tudo, o poeta intercala na página a palavra e a sua ausência, pois busca sobremodo o mutismo do silêncio: “uso as palavras para compor os meus silêncios/ Não gosto das palavras fatigadas de informar”, reitera a cada entrevista nas quais procura explicar as ideias que norteiam sua poesia, que privilegia a linguagem em si antes que a informação: “Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas quando não desejo contar nada, faço poesia”. (BARROS, 2010, p. 347).

        

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

UMA ANÁLISE DO CONTO "JOSEFA E O MENINO
TEMPO E TERNURA: A RECUPERAÇÂO DA FORÇA PELA MEMÓRIA



RESUMO

           O presente conto tem como tema a visita de um rapaz à casa antiga de sua avó. O narrador-protagonista recupera através da memória a sua infância, as suas reminiscências de uma parte importante de sua vida, deparando-se com emoções próprios de seu convívio na casa da antiga senhora. Nesse sentido, ele vive um estranho diálogo com a casa, apreendendo de seus objetos significados emotivos. Num momento crucial ele revive o pânico que sofrera quando criança ao estar dentro do jardim sem a companhia dos primos. O momento é vivido a partir do quarto da avó, com objetos representativos de sua fé. Ele compreendeu afinal que o medo do misterioso jardim havia sido vencido. A evocação de uma mulher forte pontuou este momento que divide um ser humano frágil de outro que vence na rica experiência de uma mulher que lhe deixou importantes lições.

PALAVRAS-CHAVE: Infância, reminiscências, memória, jardim

1. INTRODUÇÃO

         Neste conto, cujo enredo constrói-se como uma visita de um neto à antiga casa de sua avó, procuramos dar relevo aos aspectos da memória como desencadeador de uma experiência emotiva e também poética. A relação de um menino com a sua avó é aqui relatada a partir da experiência dele com o antigo lar da senhora. Procuramos enfatizar esta relação casa/infância no viés da memória como a define Hawbachs no seu trabalho sobre quadros sociais e memória coletiva. E como nessa evolução o protagonista vive um momento de epifania ao ver superadas as suas lembranças mais difíceis às quais possivelmente ainda o mantinham preso ao passado distante.. Também apontamos correlações do jardim com a necessidade de o homem vencer a natureza organizando- cosmicamente como uma representação do paraíso perdido.

2. SAUDADE

         Josefa e o Menino , de Alexsandro Souto Maior tem características de conto atmosférico mas também psicológico. Trata-se da visita de um personagem que se auto-intitula ‘Menino”, à antiga casa de sua avó. A atmosfera é criada pelas lembranças do narrador-protagonista de uma infância marcada ela personagem de importante ascendência sobre ele, a ancestral Josefa. E é nos meandros dessa visita que as emoções se misturam ante surpresas, medo e nostalgia dos tempos de outrora vividos entre a casa propriamente dita e o jardim, espaço central desse conto que se apresenta como uma visitação que se processa ao mesmo tempo como um resgate de um acontecimento aparentemente perdido no tempo. Os dois personagens se apresentam redondos e na diegese uma interlocução muito subjetiva se dá no plano imaginativo a partir do menino, que ao evocar uma avó cuja personalidade marcou de maneira decisiva a sua vida, o faz de tal forma como se ela se nos apresentasse viva.
        De fato, o conto trata de reminiscências autobiográficas, situando-se o enredo em dois planos: a chegada do menino àquela casa que tinha sido o lar de sua avó e onde algumas marcas antigas já foram apagadas para dar lugar a outro morador, e a sua volta ao passado, em flashbacks. No primeiro parágrafo o narrador refere-se à mudanças na casa, tal como a pintura, que já está pronta para receber um novo inquilino:
As paredes continuavam encharcadas. Porém não tinham mais o azul e o branco da longa promessa que fizera a Nossa Senhora da Conceição. Eram amarelas aguadas. Sem pestanejar, senti a ausência do retrato solitário e esmaecido de D. Josefa.
( Souto Maior, 2009, p.36.)
O protagonista no conto é o menino mas a heroína é sua avó, que ele lembra como sendo uma pessoa especial e que nos é trazida pela mão do personagem a medida em que percorre os vãos da casa marcados por sua presença. Mulher de fé e força, o menino reporta-se sobre como ela lidava com os problemas da vida:

           Dona Josefa, com sua voz rouca, tinha as rédeas da casa. Quantas lutas vãs ela travou, quantas ela perdeu? Josefa não deixava o corpo arquear. O chão não era destino dos vencedores. Entre tantas lutas, talvez a que mais sofreu foi a que lhe tomou mais tempo. Era uma doença incurável que ia comendo as suas esperanças e a cada outono ia embora um membro do seu corpo. Dona Josefa se diluía...Perdia-se num rio caudaloso e turvo. Pedaços de d. Josefa a desmontar o quebra-cabeça da heroína . (Souto Maior, 2009, p. 37)

          As mudanças no aspecto exterior da casa levam-no a percorrer interiormente e pelo fio da memória, seu caminho de volta aos tempos em que era criança: “prendi-me, por um instante, ao círculo viscoso que fazia o caracol na cozinha” (p. 36), afirma o personagem, utilizando a forma sinuosa do caracol como metáfora para ilustrar seu caminho de volta ao passado. Obedecendo ao fluxo do pensamento o narrador traz de volta certas marcas, tais como as do elefante na porta do quarto que fora do tio; visões impressionistas em que o animal parecia se mover ante o rapaz e silenciar... Toda a casa pareia mover-se como nos contos fabulares impregnados de magia e em que animais e objetos estão em cumplicidade com a criança na tarefa de recriar e transformar. Já na cozinha, o menino depara-se com “os gritos das crianças que teciam a manhã de domingo. Eram os meus primos. Eu, de alpercatas, tentava segui-los” ( p. 36). A essa altura o narrador anuncia a entrada do menino no jardim. A casa e o jardim constituem-se nos únicos espaços onde está situado o enredo. O jardim é uma espécie de espaço cósmico de onde o menino frui, através da lembrança, uma parte vital de sua infância, a das brincadeiras. O jardim funciona como o mito fundador dessa infância venturosa:
          Nós entrávamos no jardim, da minha avó, preparados para qualquer batalha. Arrancávamos cacau no intuito de fazermos, de imediato, chocolate. Colhíamos pitangas doces, assustávamos bichos peçonhentos e esquecíamos alpercatas”. ( Souto Maior, 2009, p. 36)
A sua entrada no jardim é marcada por uma atmosfera de saudade e também de um certo assombro. O termo saudade deriva do latim “solitatem”, originado a palavra “solidade”, “soldade” e, por fim “saudade”. Evoca também o sentimento nostálgico que despertou no povo português a morte do Rei D. Sebastião. O povo não acreditou na sua morte esperando que o rei voltasse “ num dia de nevoeiro”. O mito do sebastianismo, que também fundamenta esta nostalgia, permeia a cultura e a literatura de língua portuguesa, com a palavra “saudade” sendo-lhe exclusiva.
             O escritor Almeida Garret, no livro Camões, escreveu: “Se o Universo é a infinita lembrança da esperança, ele é, por isso mesmo, a expressão cósmica da Saudade”. Já o poeta português Teixeira de Pascoaes, representante do movimento estético conhecido como Saudosismo, escreveu nos versos do seu poema intitulado “Verbo Escuro”: “não ameis a cousa na própria cousa; amai-a sim na sua presença de saudade”. E Cecília Meireles escreveu no poema “ as Meninas”: Pensaremos em cada menina/que vivia naquela janela/ uma que se chamava Arabela,/ uma que se chamou Carolina/ mas a profunda saudade/ é Maria, Maria, Maria,/ que dizia com voz de amizade:/ Bom Dia!” Saudade é simultaneamente passado e futuro na evocação da presença da infância porque a infância nos acompanha por toda a vida.

3. MEMÓRIA

          É por meio do fluxo da consciência originando o monólogo interior, construído com uma linguagem própria do pensamento ininterrupto que o narrador - protagonista vai formando os quadros vivos de sua infância. O fluxo da consciência como recurso literário dá-se por meio do monólogo interior (direto ou indireto), a descrição onisciente e o solilóquio, além de técnicas básicas de narração e descrição, de acordo com Humphrey, (1954, p.3). O fluxo da consciência atuando no campo das reminiscências resgata o passado ficcional, como uma superposição de um enredo sobre outro. Assim, a entrada no jardim é ficção sobre a ficção, permeando o conto um metarrativa. O caminho então se faz de volta a um tempo em que tudo era inocência e encanto, prenunciando também o esforço da conquista à nível de realidade:
“Entrávamos o jardim preparados para qualquer batalha. Arrancávamos cacau com o intuito de fazermos, de imediato, chocolate. Colhíamos pitangas doces,assustávamos bichos peçonhentos e esquecíamos alpercatas. O jardim não nos desgastava pela grandeza do que éramos juntos” ( Souto Maior, 2009, p. 36).
          No âmbito dessas lembranças, a evocação de um mundo mágico pertencente a sua avó com a representação dos afetos ternos, fundadores de nossa capacidade amorosa:
‘à minha esquerda, o pilão esperava os grãos. Grãos redondos, pretos,torrados. Ao redor do pilão, olhos esbugalhados e o sentido do olfato aguçado. D. Josefa socava os grãos do café. Ela não cedia à industrialização do café. Preferia o ritual, os olhos dos netos e o seu saber herdado. ( Souto Maior, 2009, p.36).
           Na literatura a memória tem um papel primordial. Ela surge inicialmente através das narrativas e numa civilização sem escrita, o poeta desempenhava o papel fundamental de contar histórias. A narrativa construía-se com o canto, originando o conceito de poiesis, nome do qual deriva a poesia, O aedo, a que se seguia uma procissão fundamentou, pela declamação, a base da cultura e da educação gregas. Esta é a origem da poesia épica da qual Homero é um fundador. No caso de nosso conto a relação do protagonista com o jardim torna a narrativa mais poética. De volta ao passado o menino enxerga o jardim com vida. Olhando-o do quarto da avó, agora já adulto, o jardim parece readquirir aquele poder que lhe infligira medo; o espaço o confronta e movimenta-se ao ser olhado sob o prisma de sua fantasia de menino em pânico. O jovem lembra: “o jardim olhou-me de frente. Era a primeira vez que o vi se agigantar diante de mim. Eu estava terrificamente só”.(p.37) Trata-se do encontro do protagonista com um momento decisivo de seu passado. Ao revivê-lo, poderá estar saldando uma pendência de ordem emocional retida nos arquivos de sua memória.
           De fato, o narrador refere-se a um certo dia em que os primos não estavam com ele a explorar, sob proteção, o jardim cheio de criaturas estranhas. As árvores e os bichos moviam-se no jardim de forma ameaçadora, com sinais o que ele não decifrava: as folhas das palmeiras balançavam-se e os gafanhotos faziam algazarra; bichos assobiavam, aranhas e saúvas se agitavam. Rememorou o tempo em que era só um menino e assustou-se diante de olhos que os perscrutaram: “leões famintos deixavam cair da boca um filamento de saliva. Ainda não havia sangue naquele tempo” ( p. 37).
          No entanto, o jovem adulto revivendo o episódio da sua infância e achando-se no quarto, relembra o oratório de sua avó, com flores silvestres e anjos. Aqui o narrador - protagonista evoca o nicho de fé que pertenceu a D. Josefa, evocando, decerto a força de que se alimentava. A luta continuava com o menino vendo-se subitamente num tapete de folhas. A natureza precisava ser vencida, porque o jardim passa a ser o símbolo de um espaço contornado e dominado pelo homem em luta contra a natureza selvagem.
           O jardim da casa da avó, como espaço depositário do mistério com seus seres incalculavelmente ameaçadores, precisava ser debelado. O jardim, miticamente, tem um conteúdo emblemático e alegórico, oferecendo-se como um grande texto orgânico ou como metáfora espiritual. Trata-se da figura de uma relação de poder entre o homem e a natureza, como um elemento que liga a memória humana e a memória do mundo. O jardim reflete a nostalgia de um mundo perdido, remetendo também à ideia de paraíso perdido. Aos poucos, o menino vencia, debelando seres minúsculos. Com a força de uma fé apreendida da experiência da avó, o menino, surpreendentemente, fora ajudado pela própria aranha que agora lhe tecia um caminho aéreo, pelo qual o menino podia voar(?). Como numa fábula talvez os pequenos animais do jardim quisessem transmitir ao personagem a lição de lutar e vencer num mundo que se afigura e como necessidade dele prosseguir em sua jornada pela vida.
          Rememorar o passado atuou como catarse de um medo residual na existência do menino. Seria necessário a certeza de que este medo frente ao jardim representativo do desconhecido, estivesse vencido. E Dona Josefa tornou-se presente em sua luta por meio da coragem que expressava para que o rapaz atravessasse “esse jardim cumprido e hostil” ( p. 38). O sol veio assinalando o momento epifânico, o momento dessa travessia e o de sua realização: “o jardim era um passado do tamanho de um caracol. Sorri escancaradamente por alguns minutos e sacralizei o momento”. Revivendo o momento tudo readquiria a sua real dimensão, o passado já não o assustava e a experiência tinha agora a importância daquele mesmo caracol que o levara ao encontro de seu passado .
          De acordo com os estudos desenvolvidos por Halbwachs, a partir das ideias de Durkheim sobre a determinação social do conhecimento humano, os quadros sociais da memória indicam que o ato de lembrar não é autônomo, pois a memória autobiográfica insere-se na memória histórica. Assim nossas lembranças surgem em contato com os outros, originando-se de situações sociais. Lembramos e esquecemos como membros de grupos, conforme os lugares que neles ocupamos ou deixamos de ocupar. O ato de lembrar estará enraizado no movimento interpessoal das instituições sociais – família, classe social, escola, profissão e outras esferas de pertencimento do indivíduo. Este autor relaciona ainda memória à participação em um grupo social, em uma comunidade afetiva. No caso deste conto, a memória individual inserida na memória coletiva, aponta para a comunidade afetiva do Menino, com sua parentela: avó, tio, primos. Sedo que a memória autobiográfica, como é o caso dessa narrativa, correlaciona-se à memória histórica.
           A antiga casa que pertenceu a avó continua inserida geograficamente na rua e agora será ocupada por um novo inquilino, que, por sua vez contará a sua história, tal como a do bairro e a da cidade. Histórias familiares inseridas na história coletiva. Este estudioso lembra ainda que a memória é constituída pela linguagem. Memória da fala, dos conteúdos afetivos e sociais que se incluem nas obras de arte, nos filmes que vemos, nos livros que lemos e nas falas dos outro, no âmbito social, constituindo-se em produções históricas . A vitória do rapaz no seu encontro psicológico com o menino deu-se no âmbito de sua visita no lar antigo de sua avó e no resgate da memória de sua figura tão determinante a nível afetivo e psicológico.
A linguagem estabelecida pelo menino em solilóquio no jardim integra aquilo que Halbwachs chama de a linguagem constituída socialmente.Trata-se de uma linguagem sócio-afetiva, com signos referentes a um meio tipicamente familiar, o tempo da infância. No desfecho do conto o narrador revela que “havia chegado o fim da jornada” (p.38); o protagonista já podia assimilar a morte da avó, validara-se o sacrifício feito a todos os netos, que “ se desdobrou em gestos e palavras perenes”.
Agora, tendo alcançado outro nível de maturidade, o menino dava prosseguia como um adulto. Pela memória afetiva havia superado um estado afetivo de espanto diante da vida Essa vida agora manifesta-se de maneira sinestésica, pois trazia o cheiro da cafeína, com o café torrado que a avó fazia no pilão antigo e que o neto sorvia, fazendo- o “lembrar dos dias felizes de domingo” (p.38).

CONCLUSÃO

            Pelo fio da memória, coletiva que se individualiza no conceito formulado por Halbwaches um personagem de volta à infância pode rever pontos difíceis de sua existência. A memória desempenhou no âmbito social sua função revitalizadora. O menino na visita à antiga casa de sua avó, já morta, estando agora vazia e prestes a ser ocupada por outra pessoa, é capaz de, pela memória afetiva, ficar defronte do que lhe assustara em suas brincadeiras: um jardim e tudo o que o constituíra. Constrói com esta casa antiga – e os objetos e o espaço onde está o jardim – uma espécie de diálogo. A partir da linguagem empregada, rememorando emoções próprias de seu tempo, ele consegue penetrar nos recônditos dessas reminiscências, revendo momentos decisivos e que haviam sido arquivados. Trazendo-os de volta adquire a sensação de libertar-se. Dessa forma, a experiência trouxe-o de volta a si mesmo, pela superação de possíveis perdas e, no resgate à convivência com sua avó, a serenidade de não mais desfrutar de sua companhia.

REFERÊNCIAS

HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.
HUMPHREY, Robert. O Fluxo da Consciência . São Paulo: MacGraw-Hill, 1976.
GOTLIB, Nádia Batella Teoria do Conto, série princípios, 11ª Ed, São Paulo: Ática, 2006.
GANCHO, Cândida Vilares Como Analisar Narrativas, “Série Princípios”,7ª Ed., 7ª Impressão, São Paulo. Ática, 2002.
SOUTO-MAIOR, Alexandro. Servis Amores Senis, Recife: Editora Rápida, 2000


terça-feira, 24 de janeiro de 2012


                                   UMA LINGUAGEM PARA O TÉDIO


                         Reflexões sobre o livro Louco no Oco sem Beiras 

                                                de Frederico Barbosa                                                            



              A revolução estética fundada no Movimento Modernista trouxe-nos inovações  definitivas pelas modificações nas estruturas fônicas, léxicas e sintáticas do discurso. Estas modificações incidem sobre o significante e não casualmente os experimentalismos modernistas integram os mapas inventivos onde se situam  poetas  como Mallarmé, Rimbaud, Apollinaire, Valery,  Maiakovsky, Pound, dentre outros nomes para os quais a palavra desvincula-se do  seu significado superficial  ou corrente e é explorada ao limite nas suas possibilidades linguísticas.

             O divisor de águas desses tempos pós-modernos foi empreendido nos laboratórios do Modernismo da fase heróica e muito deve aos experimentalismos em prosa e verso de um Oswald de Andrade, por exemplo e, de seguida, ao refinamento  em Manuel Bandeira, mestre de nossos melhores versos livres. Com mais instrumentos nas mãos e todo sentimento do mundo floresce nesse mesmo terreno a poética anti-lírica de Carlos Drummond de Andrade. Águas rolaram até chegarmos à busca do rigor formal refletido num  projeto poético o  mais desvinculado possível  do pitoresco e do sentimental e que nos contempla com um dos nossos mais extraordinários poetas, João Cabral de Melo Neto.

              O  poeta pernambucano deixa-nos o legado de uma poesia que une a concepção do poema como produto à  da participação social, atingindo um lirismo substantivo. Aspectos de sua poesia são colocados pela crítica como uma antecipação ao Concretismo. No Brasil dos anos 50, coexistiam  as correntes de uma poética voltada para a invenção do poema em si e a de participação social através da qual evolui até os dias de hoje o poeta Ferreira Gullar, ele mesmo um precursor da poesia concreta  a que se desvincula por optar por uma mensagem de cunho  político-ideológica.

            O projeto concretista retomará nos anos 50 a partir de Noigrandes, com atitudes,   temas e  formas que se estabeleceram no Movimento Modernista, privilegiando, radicalmente, antes a forma que a temática. O poema é identificado como objeto de linguagem. A arte  é techné e sob esta premissa unem-se no mesmo espaço os projetos experimentalistas  da artes plásticas, da música e do  cinema.

            Objetivando conceber um poema como uma estrutura verbo-visual, o concretismo apresenta, sobretudo, propostas tais como a substituição da estrutura frásica  pela de uma sintaxe espacial. Seria a aventura de mergulhar na representação do fragmentado mundo moderno  regido pelo capitalismo, pelos mass media, pelo som dos comerciais e os textos fáceis, automatizados da linguagem publicitária.  A mimetizção desse discurso não se faria através de versos lineares mas por uma dramática ruptura nos campos semânticos, sintáticos, léxicos e morfológicos. Ainda assim esta poética  não   estaria desvinculada dos conteúdos ideológicos e sociais pelo que não chegaria a cumprir  a alta função estética e comunicativa da poesia.



TENDÊNCIAS

                A poesia contemporânea não parece estar aprisionada em nenhuma cartilha estética. A produção poética desses nossos tempos tem na releitura  da tradição e na re-construção do verso suas marcas mais visíveis e para alguns críticos, leitores e/ ou poetas esta é a baliza de “uma nova estética do rigor” .( Gurgel, p.25 ). Para este estudioso há alguns procedimentos estéticos que norteiam a produção poética na atualidade: o culto à forma, sugerindo o desejo de releitura, simulação, citação, intertexto, tudo isto calcado na tradição literária. Nesse caso, não se propõe uma ruptura das formas da tradição como se fazia no passado, quando uma estética se estabelecia às custas do rompimento com a linguagem imediatamente anterior. Há que se aproveitar as lições da tradição e contextualiza-la. Memória e informação conjugam-se nessa nova poética que coloca em relevo  o material referente, refletindo, no entanto, os  paradigmas e saberes produzidos na pós-modernidade, por sua vez,  interligados multidisciplinarmente.

          Nesse sentido,  a  poesia contemporânea construirá sua identidade também pela diferença com a tradição. No  livro  do autor pernambucano Frederico Barbosa, Louco no Oco sem Beiras - Anatomia da Depressão, (2003) identificamos  marcas  dessa nova estética. O livro aborda os temas do tédio, da angústia, da melancolia, estados que culminam numa depressão difusa manifesta numa vida que não encontra sentido. O tédio e a melancolia são estados de alma que fundamentam a filosofia existencialista de Jean Paul Sartre. Antoine de Roquertin é o protagonista de seu livro, A Náusea, o romance filosófico que publicou em 1938. No processo de preparação da biografia do Marquês de Rollebon o personagem, que é um historiador,  desencanta-se não só com a sua vida mas com  a de toda humanidade. Sente aversão pela condição humana e suas próprias conclusões de cunho niilista perturbam-no de tal forma que ele  se vê como um estranho, um louco, quase.

               Já o título do livro de Frederico Barbosa aponta-nos um sujeito poético vivendo uma existência insana, dentro de um espaço geográfico indefinido – o oco, lugar que não encontra demarcações, que  não permite a adequação, ou seja, sem beiras. Este é o espaço do tédio e da melancolia, estados que se representam nesse livro  com a ênfase no  significante e cujo processo de versificação  privilegia os aspectos visual e sonoro das palavras. No plano discursivo, Louco no Oco sem Beiras   constrói-se como um único e grande poema,  apresentando-se como fragmentado ao longo de suas 81 páginas.

               O volume divide-se em duas partes, intituladas de “O Peso” e “O P.S”, (sugerindo a sigla para a expressão em latim “post scriptum”). A  indicação dessa divisão na página encontra-se no sumário por um  ideograma, com os dois ínter - títulos postos na vertical. O poema de abertura leva-nos direto à ideia de um sujeito poético em luta com a monotonia imposta por uma rotina massacrante, alienante, desesperadora,  num mundo que nos convida  à reprodução da mesmice, tal como se lê nos versos: “o acordar é/o grave o// dia o/diabo o/ diabólico o// sono o/sono o// horror o/ chumbo o// mais que profundo o// todo o dia o/ sempre o/ diabo azul o/ branco o/ despertador”.  A  simples tecnologia  de um relógio que desperta é o símbolo de uma vida  em tormento. 

              Nota-se nos poemas, todos sem titulação e no nível textual também quebrando a convenção das maiúsculas no início da frase, a construção de versos curtos nos quais identificamos a presença do recurso da paronomásia, que consiste na exploração das semelhanças sonoras, por aliterações e assonâncias. O predomínio é das  vogais abertas, tudo isto disposto numa sintaxe que se utiliza do espaço de maneira convencional, e no campo léxico, a escolha dos vocábulos  procura representar a fala de uma pessoa em agonia, algo repetitiva, como se verifica nestes versos: estranha urgência/ essa,/distorcida em grito/ de raio paralisador//estranha urgência/essa/certeza da /essa. A musicalidade é obtida antes pela harmonia das combinação silábicas do que pela melodia propriamente, como mimética da  monotonia e de uma fala em solilóquio.

              A loucura a que se refere o título não é propriamente a dos manicômios mas a da vida que se vive sem que se tenha o privilégio de uma escolha e, no limite, a que lhe determinou o  destino  ou  a má  sorte: começo-me/ como quem grita sem/luz sem voz sem vis sem vez sem mais// desfocado/fora de faro/formigando em/ câmera lenta //sem coragem/ sem o que me dispare // vou. O verbo “começar”  é colocado na forma reflexiva neste poema em que o sujeito poético  vai gradativamente enfraquecendo  pela inadequação e sem a consciência da autonomia no seu rumo. O impulso se dilui pela existência de um  grito sem que se possa emitir a voz. Um grito estrangulado ou ensurdecido no meio de uma multidão que se move quase automaticamente numa direção  programada ou imposta.  O sujeito poético desloca-se em câmera lenta, entorpecido, quer dizer, sem forças e “vai” – para onde?    

         

INTERTEXTUALIDADE

               Identificamos no projeto poético de Frederico Barbosa esta poesia da nova estética do rigor, construnindo-se pela leitura e releitura da tradição literária. De acordo com Amadeu Ribeiro Neto, que assina o prefácio, o sujeito lírico é a única voz presente na construção dos poemas, muito embora sua dicção assuma também a expressão coletiva. Para ele, esta voz “é a de um indivíduo  ( e de uma coletividade) que paradoxalmente, protesta, insatisfeito, antes de mais nada, pela falta”( p. 14). No entanto, apoiam esta voz outras vozes  anteriores ao presente  texto, no qual encontramos o   registro de outros códigos artísticos pelo recurso da intertextualidade.

                A página de abertura traz duas citações, de Guimarães Rosa e de Edgar Allan Poe. Trata-se de dois autores de estilos e épocas  diversas, unindo-se pela vontade da fala, que se expressa (ou não) de modo muito particular por cada personagem. A citação que se refere ao personagem - contador de histórias de Guimarães Rosa, evoca o seu  sertão do tamanho do mundo e remete ao próprio  título, “Loco no oco sem beiras”. “Participa” ainda desse livro o autor romântico, Casimiro de Abreu. O sujeito lírico lembrará seus oito anos, situados numa aurora tão semanticamente diferente, quando nada era tão lírico e suave pois ele já ardia na certeza de um deslocamento social precoce. ( p. 34.). O spleen  que ocorre em Byron também ocorre no sujeito entediado e triste, o diabo o trouxe, como se pode ler no poema da página 76.

                  O magro cavalo de D. Quixote talvez não o isolasse tanto como quando segue calado no seu carro, tal como sugere o poema da página 55.Ainda apontando outras tendências, encontramos no texto de FB,  versos lineares ao esboçar um paradoxo sobre o tema da morte,  tal como se lê:  o que me espanta não é a morte/ é ouvi-la tão aguda/que por sorte não se escuta”(p. 45 ). E tal como o personagem de Albert Camus, o sujeito lírico, imerso  na melancolia,  também descobre que  está na vida  como um estrangeiro: “ de Camus em diante/ deitava descrente/ e me deixava sentir/na cama morto o/morto”( p.39). Nota-se na construção dos versos a colocação do artigo definido depois do substantivo como a indicar  indiferença e indefinição. Tanto faz que a “coisa” que o artigo define não esteja, sistematicamente, ligada ao sujeito.

                O poeta aborda a dispersão, a banalização da fala pelos diálogos fragmentados da comunicação virtual em poemas nos quais ironiza os chats na internet e o telefone celular, tal como se lê: “papo de chat/ chato chato/ mal de e-mail/virtualidades banais/ e meu tempo se vai/on line.Utilizando-se do recurso da intratextualidade o poeta também empreende um  diálogo com sua própria produção. O poema que inicia o livro é o mesmo que encerra sua primeira parte diferenciado, entretanto, por uma construção nova pelo recurso da inversão de algumas estrofes, sugerindo a teia labiríntica onde o sujeito lírico se insere. Também pela abordagem, por exemplo,  de temas ligados ao seu livro Nada sobre Nada, publicado em 1994.

                Desse modo, o poeta rompe com as amarras de um texto linear com  a previsão do começo, meio e fim. Este é um discurso que sugere um círculo ou o sinal do infinito na representação, talvez, desse nosso momento histórico, apresentando paradigmas que até se contradizem e que não nos permite certificações exatas para o Objeto, a Coisa, o Ser, como  tão bem refere  Amador Ribeiro Neto, que assina o prefácio. Um tempo da des-utopia, que melhor será representado por esta proposta da despoesia que um dia um poeta concretista proclamou.



REFERÊNCIAS



BARBOSA FILHO, Hildeberto. A Luz e o Rigor: reflexões sobre o poético. João Pessoa: Manufatura, 2006.

BARBOSA, Frederico. Louco no Oco Sem Beiras. São Paulo:Ateliê Editorial, 2001.

BARRENTO, João. O poema é uma hipótese.In: O Arco da Palavra. São Paulo: Escrituras, 2006.

ELIOT, T.S. A função Social da Poesia. In: Ensaios de doutrina crítica. Lisboa: Guimarães editores, 1997.

MOISÉS, Carlos Felipe. Poesia e Utopia. São Paulo: Escrituras, 2007.

PAZ, Octavio. Os Filhos do Barro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

___________. O Arco e a Lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Altas Literaturas. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

SECCHIN, Antonio Carlos. Poesia e Desordem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.