UMA LINGUAGEM PARA O TÉDIO
Reflexões sobre o livro
Louco no Oco sem Beiras
de Frederico
Barbosa
A revolução estética fundada no Movimento Modernista trouxe-nos inovações definitivas pelas modificações nas estruturas
fônicas, léxicas e sintáticas do discurso. Estas modificações incidem sobre o
significante e não casualmente os experimentalismos modernistas integram os
mapas inventivos onde se situam poetas
como Mallarmé, Rimbaud, Apollinaire, Valery, Maiakovsky, Pound, dentre outros nomes para
os quais a palavra desvincula-se do seu
significado superficial ou corrente e é
explorada ao limite nas suas possibilidades linguísticas.
O divisor de águas desses tempos pós-modernos foi empreendido nos
laboratórios do Modernismo da fase heróica e muito deve aos experimentalismos
em prosa e verso de um Oswald de Andrade, por exemplo e, de seguida, ao
refinamento em Manuel Bandeira, mestre de
nossos melhores versos livres. Com
mais instrumentos nas mãos e todo sentimento do mundo floresce nesse mesmo
terreno a poética anti-lírica de Carlos Drummond de Andrade. Águas rolaram até
chegarmos à busca do rigor formal refletido num
projeto poético o mais
desvinculado possível do pitoresco e do
sentimental e que nos contempla com um dos nossos mais extraordinários poetas,
João Cabral de Melo Neto.
O poeta pernambucano deixa-nos o
legado de uma poesia que une a concepção do poema como produto à da participação social, atingindo um lirismo
substantivo. Aspectos de sua poesia são colocados pela crítica como uma
antecipação ao Concretismo. No Brasil dos anos 50, coexistiam as correntes de uma poética voltada para a
invenção do poema em si e a de participação social através da qual evolui até
os dias de hoje o poeta Ferreira Gullar, ele mesmo um precursor da poesia
concreta a que se desvincula por optar
por uma mensagem de cunho político-ideológica.
O
projeto concretista retomará nos anos 50 a partir de Noigrandes, com atitudes, temas e formas que se estabeleceram no Movimento
Modernista, privilegiando, radicalmente, antes a forma que a temática. O poema
é identificado como objeto de linguagem. A arte
é techné e sob esta premissa unem-se no mesmo espaço os projetos
experimentalistas da artes plásticas, da
música e do cinema.
Objetivando conceber um poema como uma
estrutura verbo-visual, o concretismo apresenta, sobretudo, propostas tais como
a substituição da estrutura frásica pela
de uma sintaxe espacial. Seria a aventura de mergulhar na representação do
fragmentado mundo moderno regido pelo
capitalismo, pelos mass media, pelo
som dos comerciais e os textos fáceis, automatizados da linguagem
publicitária. A mimetizção desse
discurso não se faria através de versos lineares mas por uma dramática ruptura
nos campos semânticos, sintáticos, léxicos e morfológicos. Ainda assim esta
poética não estaria desvinculada dos conteúdos
ideológicos e sociais pelo que não chegaria a cumprir a alta função estética e comunicativa da
poesia.
TENDÊNCIAS
A poesia contemporânea não parece estar aprisionada em nenhuma cartilha
estética. A produção poética desses nossos tempos tem na releitura da tradição e na re-construção do verso suas
marcas mais visíveis e para alguns críticos, leitores e/ ou poetas esta é a
baliza de “uma nova estética do rigor” .( Gurgel, p.25 ). Para este estudioso há
alguns procedimentos estéticos que norteiam a produção poética na atualidade: o
culto à forma, sugerindo o desejo de releitura, simulação, citação, intertexto,
tudo isto calcado na tradição literária. Nesse caso, não se propõe uma ruptura
das formas da tradição como se fazia no passado, quando uma estética se
estabelecia às custas do rompimento com a linguagem imediatamente anterior. Há
que se aproveitar as lições da tradição e contextualiza-la. Memória e
informação conjugam-se nessa nova poética que coloca em relevo o material referente, refletindo, no entanto,
os paradigmas e saberes produzidos na
pós-modernidade, por sua vez,
interligados multidisciplinarmente.
Nesse sentido, a poesia contemporânea construirá sua identidade
também pela diferença com a tradição. No
livro do autor pernambucano
Frederico Barbosa, Louco no Oco sem Beiras
- Anatomia da Depressão, (2003) identificamos marcas
dessa nova estética. O livro aborda os temas do tédio, da angústia, da
melancolia, estados que culminam numa depressão difusa manifesta numa vida que
não encontra sentido. O tédio e a melancolia são estados de alma que fundamentam
a filosofia existencialista de Jean Paul Sartre. Antoine de Roquertin é o
protagonista de seu livro, A Náusea, o
romance filosófico que publicou em 1938. No processo de preparação da biografia
do Marquês de Rollebon o personagem, que é um historiador, desencanta-se não só com a sua vida mas
com a de toda humanidade. Sente aversão
pela condição humana e suas próprias conclusões de cunho niilista perturbam-no
de tal forma que ele se vê como um
estranho, um louco, quase.
Já o título do livro de Frederico Barbosa aponta-nos um sujeito poético
vivendo uma existência insana, dentro de um espaço geográfico indefinido – o
oco, lugar que não encontra demarcações, que
não permite a adequação, ou seja, sem beiras. Este é o espaço do tédio e
da melancolia, estados que se representam nesse livro com a ênfase no significante e cujo processo de versificação privilegia os aspectos visual e sonoro das
palavras. No plano discursivo, Louco no
Oco sem Beiras constrói-se como um único e grande poema, apresentando-se como fragmentado ao longo de
suas 81 páginas.
O volume divide-se em duas partes, intituladas de “O Peso” e “O P.S”, (sugerindo
a sigla para a expressão em latim “post scriptum”). A indicação dessa divisão na página encontra-se
no sumário por um ideograma, com os dois
ínter - títulos postos na vertical. O poema de abertura leva-nos direto à ideia
de um sujeito poético em luta com a monotonia imposta por uma rotina
massacrante, alienante, desesperadora,
num mundo que nos convida à
reprodução da mesmice, tal como se lê nos versos: “o acordar é/o grave o// dia o/diabo o/ diabólico o// sono o/sono o//
horror o/ chumbo o// mais que profundo o// todo o dia o/ sempre o/ diabo azul
o/ branco o/ despertador”. A
simples tecnologia de um relógio
que desperta é o símbolo de uma vida em
tormento.
Nota-se nos poemas, todos sem titulação e no
nível textual também quebrando a convenção das maiúsculas no início da frase, a
construção de versos curtos nos quais identificamos a presença do recurso da
paronomásia, que consiste na exploração das semelhanças sonoras, por
aliterações e assonâncias. O predomínio é das
vogais abertas, tudo isto disposto numa sintaxe que se utiliza do espaço
de maneira convencional, e no campo léxico, a escolha dos vocábulos procura representar a fala de uma pessoa em
agonia, algo repetitiva, como se verifica nestes versos: estranha urgência/ essa,/distorcida
em grito/ de raio paralisador//estranha urgência/essa/certeza da /essa.
A musicalidade é obtida antes pela harmonia das combinação silábicas do que
pela melodia propriamente, como mimética da
monotonia e de uma fala em solilóquio.
A loucura a que se refere o título não é propriamente a dos manicômios
mas a da vida que se vive sem que se tenha o privilégio de uma escolha e, no
limite, a que lhe determinou o
destino ou a má
sorte: começo-me/ como quem grita
sem/luz sem voz sem vis sem vez sem mais// desfocado/fora de faro/formigando
em/ câmera lenta //sem coragem/ sem o que me dispare // vou. O verbo “começar” é colocado na forma reflexiva neste poema em
que o sujeito poético vai gradativamente
enfraquecendo pela inadequação e sem a
consciência da autonomia no seu rumo. O impulso se dilui pela existência de
um grito sem que se possa emitir a voz.
Um grito estrangulado ou ensurdecido no meio de uma multidão que se move quase
automaticamente numa direção programada
ou imposta. O sujeito poético desloca-se
em câmera lenta, entorpecido, quer dizer, sem forças e “vai” – para onde?
INTERTEXTUALIDADE
Identificamos no projeto poético de
Frederico Barbosa esta poesia da nova estética do rigor, construnindo-se pela
leitura e releitura da tradição literária. De acordo com Amadeu Ribeiro Neto,
que assina o prefácio, o sujeito lírico é a única voz presente na construção
dos poemas, muito embora sua dicção assuma também a expressão coletiva. Para
ele, esta voz “é a de um indivíduo ( e
de uma coletividade) que paradoxalmente, protesta, insatisfeito, antes de mais
nada, pela falta”( p. 14). No entanto, apoiam esta voz outras vozes anteriores ao presente texto, no qual encontramos o registro de outros códigos artísticos pelo
recurso da intertextualidade.
A página de abertura traz duas citações, de Guimarães Rosa e de Edgar
Allan Poe. Trata-se de dois autores de estilos e épocas diversas, unindo-se pela vontade da fala, que
se expressa (ou não) de modo muito particular por cada personagem. A citação
que se refere ao personagem - contador de histórias de Guimarães Rosa, evoca o
seu sertão do tamanho do mundo e remete
ao próprio título, “Loco no oco sem
beiras”. “Participa” ainda desse livro o autor romântico, Casimiro de Abreu. O
sujeito lírico lembrará seus oito anos, situados numa aurora tão semanticamente
diferente, quando nada era tão lírico e suave pois ele já ardia na certeza de
um deslocamento social precoce. ( p. 34.). O spleen que ocorre em Byron
também ocorre no sujeito entediado e triste, o diabo o trouxe, como se pode ler
no poema da página 76.
O magro cavalo de D. Quixote
talvez não o isolasse tanto como quando segue calado no seu carro, tal como
sugere o poema da página 55.Ainda apontando outras tendências, encontramos no
texto de FB, versos lineares ao esboçar
um paradoxo sobre o tema da morte, tal
como se lê: “o que me espanta não é a morte/ é ouvi-la tão aguda/que por sorte não
se escuta”(p. 45 ). E tal como o personagem de Albert Camus, o sujeito
lírico, imerso na melancolia, também descobre que está na vida
como um estrangeiro: “ de Camus em
diante/ deitava descrente/ e me deixava sentir/na
cama morto o/morto”( p.39). Nota-se na construção dos versos a colocação do
artigo definido depois do substantivo como a indicar indiferença e indefinição. Tanto faz que a
“coisa” que o artigo define não esteja, sistematicamente, ligada ao sujeito.
O poeta aborda a dispersão, a
banalização da fala pelos diálogos fragmentados da comunicação virtual em
poemas nos quais ironiza os chats na internet e o telefone celular, tal como se
lê: “papo de chat/ chato chato/ mal de
e-mail/virtualidades banais/ e meu tempo se vai/on line”.Utilizando-se do recurso da
intratextualidade o poeta também empreende um
diálogo com sua própria produção. O poema que inicia o livro é o mesmo
que encerra sua primeira parte diferenciado, entretanto, por uma construção
nova pelo recurso da inversão de algumas estrofes, sugerindo a teia labiríntica
onde o sujeito lírico se insere. Também pela abordagem, por exemplo, de temas ligados ao seu livro Nada sobre Nada, publicado em 1994.
Desse modo, o poeta rompe com as
amarras de um texto linear com a
previsão do começo, meio e fim. Este é um discurso que sugere um círculo ou o
sinal do infinito na representação, talvez, desse nosso momento histórico,
apresentando paradigmas que até se contradizem e que não nos permite
certificações exatas para o Objeto, a Coisa, o Ser, como tão bem refere Amador Ribeiro Neto, que assina o prefácio.
Um tempo da des-utopia, que melhor será representado por esta proposta da despoesia que um dia um poeta
concretista proclamou.
REFERÊNCIAS
BARBOSA FILHO, Hildeberto. A Luz e o Rigor: reflexões sobre o
poético. João Pessoa: Manufatura, 2006.
BARBOSA,
Frederico. Louco no Oco Sem Beiras. São
Paulo:Ateliê Editorial, 2001.
BARRENTO, João. O poema é uma hipótese.In: O Arco da Palavra.
São Paulo: Escrituras, 2006.
ELIOT, T.S. A
função Social da Poesia. In: Ensaios de
doutrina crítica. Lisboa: Guimarães editores, 1997.
MOISÉS, Carlos
Felipe. Poesia e Utopia. São Paulo:
Escrituras, 2007.
PAZ, Octavio. Os Filhos do Barro. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1984.
___________. O Arco e a Lira. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira,
PERRONE-MOISÉS,
Leyla. Altas Literaturas. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
SECCHIN, Antonio
Carlos. Poesia e Desordem. Rio de
Janeiro: Topbooks, 1996.
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